quinta-feira, 29 de julho de 2010

O espelho

Eva olhava-se no espelho. Usava bastante de seu tempo para ver aquele rosto que não desejava: a cicatriz feita pelo seu ex-namorado com uma faca de cozinha ainda doía. Não no rosto, mas na alma. Uma triste cicatriz retilínea, uniforme, cirúrgica, transcorrendo o percurso entre a narina direita e a bochecha, também à direita.

Eva não perdoaria nunca o Juca, seu ex-namorado. Não por tê-la cortado o rosto, mas por não matá-la, já que preferia estar morta do que viver com esta face macabra. Deixou de estudar assim que seus colegas de turma lhe puseram o apelido “scarface”. Já não saía de casa há muito tempo. A vida para Eva era pior que qualquer pesadelo infernal. Tudo o que ela queria era ter uma vida nova, retroceder estes dias e viver à sua maneira: uma nova chance que o espaço-tempo nunca lhe daria.

“Vem comer, Eva. O almoço tá na mesa!”, grita Edwiges, sua mãe, ao pé da escada. Foi o som que despertou Eva de seus devaneios em frente ao espelho. Desceu a escada em passos medidos, como sempre. Verificou se sua mãe não havia convidado ninguém para almoçar – mania maternal que deixava Eva muito irritada –, viu que só estavam ali ela, sua mãe e Desdêmona, sua gata. Sentou-se para comer. Qual a sua surpresa que, depois de meses, Edwiges fez batatas fritas, a comida dos sonhos eternos de Eva. “Ah, Dona Edwiges, não precisava!”, dizia (na verdade, precisava sim).

As duas conversavam e o morro de batatas fritas entre elas diminuía lentamente. Edwiges não ousava falar dos traumas de sua filha e da necessidade de superá-los, apesar de querer muito. Eva não ousava perguntar sobre a visita de sua mãe à mãe do Juca e a tristeza daquela, apesar de querer muito. Então, conversavam sobre novela, política, metafísica, filosofia, chocolate, física quântica. Edwiges falava daquela casa, abrigo da família há gerações e que, dizem, guarda mistérios. Eva falava que isso era conversa, história para impressionar criança.

“Mas sabe, Eva, seu bisavô dizia que o espelho do sótão é mágico...” dizia, crédula, Edwiges. “Bobagem, mãe! Aquele espelho me deixa bonita, por acaso?” dizia, cética, Eva. Cética mas incomodada com aquelas palavras, inéditas para ela. Pensava no espelho lá no sótão e as horas que gastava em frente a ele, remoendo lembranças dolorosas. Pensava o quanto aquele espelho a ajudava a pensar. Mas sabia que o mundo gosta de fazer coincidências para confundirmos com destino ou mágica.

Depois de dar boa noite à sua mãe, Eva subiu para o sótão. Lá, ficou novamente encarando o espelho, pensando em como seria sua vida se não tivesse conhecido o Juca. Mas aí entrou um elemento novo à sua quimera: as palavras de seu bisavô repetidas por sua mãe. Olhava para o espelho e, desta vez, sentia como se o espelho olhasse para ela também. Encarava sua imagem refletida que, agora, parecia ter vida própria. Humanamente, quis tocar sua mão com o reflexo e, neste instante, viu um grande clarão, sentiu-se desmaiar e lembrou-se subitamente do que havia apagado de sua memória: a noite em que Juca a cortou.

Parecia estar lá, novamente, como se tivesse voltado no tempo. A discussão, o hálito impregnado de cachaça na boca do Juca, o exato momento em que pegou a faca. Sabia o que ia acontecer, segundos depois, minutos, horas, dias, anos depois. “Vou rasgar tua cara, vagabunda!”, repetiu ou disse pela primeira vez Juca, Eva não sabia ao certo. Como se tudo estivesse em câmera lenta, Eva pegou uma chave de fenda, daquelas compridas. Assim que recebeu o golpe de Juca em seu rosto, Eva enterrou a ferramenta no peito do namorado. “Você conseguiu mudar tudo, né, vagabunda?”, disse Juca sua última frase, já na verdade-epifania dos mortos.

Eva viu novamente um clarão. Desmaiou. Acordou estranhamente de pé, no sótão. Olhava-se no espelho. Usava bastante de seu tempo para ver aquele rosto que, apesar de tudo, desejava: a cicatriz feita pelo ex-namorado com uma faca de cozinha já não doía. Nem no rosto, nem na alma. Uma ínfima cicatriz assimétrica, até mesmo charmosa, transcorrendo o percurso entre a narina esquerda e o lábio superior. Também não doía sua consciência por ter enterrado uma chave de fenda no peito de Juca, tirando-lhe a vida. “Legítima defesa!”, repetia a si mesma. Legítima defesa de sua vida, sua honra, sua dignidade, seu universo.

Soneto doente

Caminha pela noite o peregrino
sem destino, vagueia, não se apressa.
Canta impossíveis tons em desafino
sua dor visceral que o corrói sem pressa.

Uma dor que parte as tripas e o peito
solitário do errante caminhante
que se perde em linhas retas. Direito
e esquerdo não existem nesse instante.

A náusea que não foi apresentada
o derruba sobre os papéis marcados
por tinta, sangue d’alma machucada.

Essa náusea, que os deixa separados,
ele, poeta, errante. Ela, inominada,
mulher, síntese de todos os fados.

Fábio Pedro Racoski

quarta-feira, 21 de julho de 2010

A Gaita Curitibana, ou "Curitiban Bagpipes"

De férias, procurando o que inventar, juntei uns pedaços de conduíte e PVC com fita isolante, prendi um balão (uma bexiga) e fixei duas flautas doce com fita crepe.

A flauta doce soprano faz a nota fundamental, Ré (deveria ser Ré, pelo menos). Para isso, fechei os buracos com fita crepe, de acordo com o dedilhado.

Nessa tentativa de gaita de fole, "tentei" tocar a canção Amazing Grace:

sábado, 17 de julho de 2010

Comentários que somem...

Alguns comentários simplesmente desapareceram depois que mudei o endereço do blogue. Peço desculpas por isso, e não sei o que está acontecendo.

Quis avisar sobre isso, pois podia parecer que eu apaguei estes comentários, coisa que não fiz.

Novo nome

Caro leitor, querida leitora: a partir deste domingo, 18 de julho, o blogue passará a ser conhecido pelo endereço www.racoski.com e pelo título "Racoski".

Eu explico a mudança: "Rádio Gordo" é um nome que adotei ao blogue porque há muito tempo queria manter um podcast aqui, além dos textos já presentes. Depois, "arrumei" alguns significados para o título, como podem ler aqui. Há, também, um humilde canadense que adotou este nome para sua carreira musical, com o qual possui mais sentido - afinal, seu nome é Gordon (Nicholson) e trabalha numa rádio.

Sendo assim, antes que uma firma de advocacia ou uma empresa de desentupir vasos sanitários assuma o racoski.com, registrei o domínio, que utilizarei daqui em diante neste blogue. É meu sobrenome também. Vem do polaco "Rakowski", que significa "de Rekowo" e Rekowo é o nome de uma vila (e um lago) que significa "de caranguejo" (Mangue Beat!). Ou pode significar, ainda, "de Rakow" (ou "Rakowo", nome de várias vilas na Polônia). E "rakow" significa lagosta.

O nome muda, mas meus textos seguem ainda por aqui, sempre! Espero que compreendam a mudança e, enquanto a Locaweb atualiza os DNS de redirecionamento do domínio, há o endereço direto disponível: fabioracoski.blogspot.com.

Obrigado pela visita e até o próximo "post"!

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Comunista fashionista

Quando Stálin caiu,
a saia da camarada subiu.
E ser de esquerda virou algo sexy.
 
Quando o capitalismo cresceu,
o comércio tudo vendeu.
Inclusive camisetas do Che.
E boinas.

Fábio Pedro Racoski

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Barco de papel


Num mar de melancolia
minh'alma se afoga, náufraga
do pranto vertido, sôfrega
pela morte calmaria.

Em ribeirões de tristeza
se esvai meu corpo, sem ânimo.
Nada resta de magnânimo.
No peito resta a pobreza.

Flutuar já não desejo.
Viver eu não quero mais.
Quero remar rumo ao cais
do fim que, daqui, já vejo.

Se algum desejo inda vive,
é a vontade de ser verso
triste, de viver o inverso
do falso riso que tive.

Fábio Pedro Racoski

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Versos capitolinos

Não, querido.
Não penses mal de mim.
Eu não te traí,
nós é que nos traímos
à nossa confiança.

Não, querido.
Teu filho não é bastardo.
Bastardos somos nós
que o negamos os beijos,
os abraços e as lágrimas
de pai e mãe.

Que compromisso é este
que nos prende a temores
incabíveis?
Que honra estúpida é esta
de querer afirmar-se
íntegro, se
nossos corações
estão rotos?

Não, querido.
Não me feriste a face.
Mas rasgamos nossas almas
maltrapilhas
em linhas de pobre
literatura.

Fábio Pedro Racoski