quarta-feira, 16 de junho de 2010

Clarice e a janela

Desde aquele dia, Clarice não olhou mais pela janela do quarto.

Quando completou 17 anos, Clarice, tímida, ensimesmada, leitora frenética e escritora eventual, pediu humildemente a seus extrovertidos pais um presente especial: queria fazer uma tatuagem. “É um pequeno dragão, símbolo dos lusos”, justificou-se aos progenitores. Depois de firmado um tratado entre os três, delimitando o espaço territorial na pele a ser ferido com tinta, Clarice saiu feliz, em direção ao tatuador.

Após explicar os detalhes heráldicos da figura ao tatuador, Clarice voltou para casa, com a pele avermelhada, febril, porém exultante com seu dragão verde. Seus pais não entendiam o motivo de tanta alegria da filha por uma discreta, trivial e esverdeada figura que agora repousa em suas costas. “Ah, meu homem, é a primeira aventura dela fora dos livros!”, disse sabiamente a mãe. Depois de conversar muito com os pais – o que não era seu costume – sobre heráldica, dragões, literatura medieval e heróis da Antiguidade ibérica, Clarice foi para o quarto, escrever poemas.

Viriato, meu dragão,
toma-me por tua,
queima-me com teus lábios de herói
e envolve-me em teus braços fortes.

Foram esses versos que os pais de Clarice encontraram escritos ao lado da janela no quarto. Ela estava sentada na poltrona, imóvel, catatônica, com um estranho sorriso no rosto. O chamado de seus pais não tirava Clarice do transe. Ela continuava ali, como uma bela e tristemente sorridente estátua. Depois de muitos minutos, Clarice levantou-se, chorou. “Ele foi embora, pela janela que entrou”, dizia. “Quem? Ladrão?”, perguntava o pai. Clarice só dizia que fora “ele”.

Clarice estava muito cansada. Seu corpo ainda coberto de suor. A mãe teve que ajudá-la até o banho. Reparou, assustadoramente, que a recente tatuagem de dragão verde havia desaparecido. “Ele. Foi embora.”, repetia Clarice, tentando explicar, em poucas palavras, o que havia acontecido.

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