Há alguns meses eu postei um conto de minha autoria neste blogue. O "Dia sem fim" foi publicado em onze partes, no estilo folhetim. Decidi reuni-las e publicar o conto completo.
Para quem tiver paciência e curiosidade o suficiente e quiser se aventurar nessa literatura barata, aqui está o "Dia sem fim" no Google Docs:
http://docs.google.com/View?id=dg66df7z_0gz6ghhhg
Ou, se preferir, pode ler o conto dentro do blogue, clicando aqui.
DIA SEM FIM
Autor: Fábio Pedro Racoski
Mais um dia terrível.
Visita de domingo: família, amigos e penetras reunidos em torno de uma maionese ruim. Ao cair da noite, todos se foram dentro do Interbairros II, o verdejante expresso infernal que conduz milhares de almas por dentro de Curitiba. Chutando os chinelos, desfaleci sobre a cama.
Então aconteceu o primeiro pesadelo: o céu estava em chamas. Olhei pela janela do quarto e vi bombas incendiárias destruindo nossas casas de madeira. O napalm cruzava a superfície e impregnava seu mau cheiro pelo ar. Queria sair dali, queria correr para longe, fugir para a Austrália. Não podia mais.
Mas, ei! Não moro em casa de madeira! Não sou um vietnamês prestes a correr do napalm ao lado de Kim Phuc! Não: não era verdade! Levantei e fui até a cozinha para tomar água. Levo um susto mortal: alguém arrombou a porta. Eram dois oficiais da SS nazista; eles me renderam. Estavam me conduzindo até o caminhão, mas, ao passar pela porta, alguma força me prendeu. Os chucrutes ficaram para fora; eu, para dentro, encarcerado por uma parede invisível que me jogava para o interior da casa.
Mais um sonho, só pode ser! Tomei um gole de vinho barato. Mais um. E outro. Apliquei beliscões no braço: nada. Voltei à cama, mas um forte tremor me fez levantar e espiar pela janela: milhares e milhares de cavalos, cavaleiros, lanceiros, todos bradando: “Alerrándros, Alerrándros, Alerrándros!”
Uma flecha atingiu o vidro de onde eu assistia aos macedônios e tudo caiu num clarão ofuscante. Depois que essa luz se apagou, só se via destruição por tudo. Meu Deus! Era Hiroshima! Eu estava viajando por tempos e lugares? Qual a procedência do vinho? O que minha tia pôs naqueles croquetes?
Fechei os olhos e, ao abri-los novamente, não havia mais casa, cama, paredes... Eu via pessoas sendo chicoteadas, estupradas, esquartejadas, escravizadas, roubadas... Um buraco abriu debaixo de mim e eu caí. Caí por horas, minutos... Até que me estatelei contra mim mesmo na cama de minha casa.
Eita, pesadelo! Eram seis da manhã de segunda-feira. Já havia perdido o Interbairros II que me leva ao serviço na hora certa. Atrasado de novo! Saí em disparada, mas o sol brilhava azul numa rua que era outra...
Só podia ser droga, mesmo. Ou, então, uma experiência religiosa... Não: lá vinha o Interbairros II. Mas não era verde: estava azul. Deixando meu daltonismo momentâneo de lado, entrei na condução.
Estranho: o motorista era outro. O cobrador também. Não havia ninguém conhecido no ônibus. Apenas pessoas de cabeça raspada, todas, e roupas alaranjadas. Alguém me cumprimenta: “purifica-te ao Imperador, forasteiro!” Não entendi e nunca entenderei essa saudação. Ao entregar o dinheiro para o cobrador, este me devolve: “nunca vimos estas cédulas por aqui; não são cédulas do Imperador. É um invasor! Atirai-o para fora!” E lá fui eu, voando lentamente para um encontro do meu nariz com o concreto áspero da calçada.
Desmaiei. Quando acordei, estava dentro de casa. Deixei cair o café sustentado em minhas mãos. Vesti o macacão e fui em direção ao meu emprego de metalúrgico. Eram seis da manhã e o sol brilhava vermelho no céu...
Estava atrasado: precisava correr para alcançar o Interbairros II. Consegui! Entrei e... um ônibus lotado como eu nunca tinha visto, repleto de mulheres em túnicas transparentes. Elas cantavam coisas estranhas e me jogavam flores. “Seja bem-vindo, estrangeiro”, disse a mais bela. Quando comecei a gostar desse devaneio (ou não...), uma força me puxa, fazendo cair estatelado na sala de minha casa.
Levantei, vesti meu jaleco e saí em direção à escola onde dou aulas. Eram seis da manhã de segunda-feira e eu estava atrasado para o Interbairros II de sempre. O sol brilhava roxo no céu. Percebi que alguma coisa estava fora do comum: os sonhos pareciam reais; as sensações pareciam sentidas; o Interbairros II parecia um bom ônibus. Resolvi não pegar condução. Liguei para a escola avisando sobre minha falta recém-planejada. Eles nem se importam: hoje (hoje?) era minha permanência. Não veria alunos e alunas.
Resolvi caminhar pelas ruas da vizinhança e, ao dobrar uma esquina, me encontro com uma de minhas alunas, Irina. “Onde você vai, professorzinho?”, indagou-me Irina. Não sabia o que responder. Não sabia se ainda era sonho, pois Irina é uma de minhas alunas mais dedicadas. E bela, ainda que eu a veja como uma filha. “Eu também estou perdida, nem sei se hoje é hoje. É por causa desse sol agora roxo!”
O que Irina disse fez-me palpitar de tal forma que precisei buscar assento no meio-fio. Como ela sabia que eu estava perdido, se nem eu mesmo tinha pensado nisso? Estávamos nós dois nesse turbilhão espaço-temporal-alucinógeno?
Continuamos eu e Irina à frente na calçada destruída pela incrível força das raízes de árvores. Aquele sol brilhando roxo e transformando o céu num bordô-rosê uniforme me causava náuseas. “Calma, professor: quando passar o efeito, você vai ficar bem!”, disse Irina. “Efeito de drogas? Como, se eu não sou drogado?”, indaguei a moça religiosamente.
Enquanto caminhávamos, Irina me explicou que o que causa as náuseas é o sol roxo. Ela afirmava estar sóbria. Quanto a mim: eu já não sabia. Tinha dúvidas de quanto vinho bebi: a cor do céu não me deixava esquecê-lo. Nesse espaço de silêncio para as minhas divagações, um clarão surgiu diante de nós. “Fique calmo, professor”, disse Irina – quem eu deveria conduzir agora me conduz! “É só o Tesla!”
E era mesmo: alguém que poderia passar por sósia de Frank Zappa vestindo roupas de época. Nikola Tesla, inventor do motor trifásico, experimentador da descarga de Tesla e, para alguns, o criador do “raio da morte”. Ali, à minha frente. “Ele está e não está aqui, professor”, educou-me mais uma vez Irina. “Como assim: está e não está? Holografia? Alucinação?”, perguntei, embriagado de informações confusas e improváveis.
Segundo Irina, o que avistávamos então era uma ligação entre espaços, tempos, universos, mundos de imaginação e orgânicos. “Não é um buraco de minhoca”, disse a aluna-mestra antes que eu o terminasse de pensar. “Você viveu essa experiência, de maneira mais intensa, hoje à noite”.
Agora eu estava realmente com medo: “COMO VOCÊ SABE DISSO?” Irina amarrou seus cabelos pretos, deixando revelar ainda mais a face pálida. Olhou-me da maneira mais profunda que alguém me olhou desde que saí da casa de minha mãe e disse, suavemente: “fui eu quem levou o professor a viver aquilo. E por isso você está aqui. Nós precisamos do senhor!”
Quem precisava? E para que um professor de história seria útil num mundo de devaneios? Eu quero acordar...
De um instante para outro, o mundo que aprendi a contar para alunos, amigos e familiares era para mim um desconhecido. Eu me sentia como um bebê ao ver pela primeira vez a luz do sol. Não entendia como fui, ao mesmo tempo, no mesmo instante, secretário e metalúrgico, profissões que nunca ousei exercer. Minha sensação era talvez igual à de uma girafa arrancada de sua savana na África e presa num zoológico em Nova Iorque. Tudo para mim era alienígena. Eu só conseguia identificar-me a mim mesmo através da Irina de pele branquíssima e olhos pretos.
“O senhor é o único que pode arrumar toda essa bagunça, professor”, disse-me Irina com os olhos de ver pai. “Eu? Arrumar? Arrumar o quê?”, o único pensamento frutífero em minha mente. “Arrumar os mundos que se misturaram”. Segundo minha querida aluna (seria eu aluno e ela a professora?), o sol roxo, os devaneios da minha última noite de sono, as viagens inexplicáveis entre mundos de sóis multicolores, isso tudo era resultado do prólogo de uma tragédia: mundos se chocando, uns contra os outros, e acabando com a realidade em cada um para que exista uma só, onde o Imperador governe.
“Não são universos paralelos!”, exclamou Irina, novamente antecipando-se ao meu pensamento. “São mundos diferentes, não-paralelos, não-lineares. Mundos reais e imaginários. Olhe no seu relógio, professor. Já se passaram dezenove horas de segunda-feira e ainda estamos com o sol, ainda que roxo, da manhã. Veja lá, no fim da rua: aquele vestido de casaca azul. É o Werter!”
Werter não é, nem de perto, meu preferido no mundo da imaginação literária. Então: o que ele fazia ali? Como mundos imaginários podem invadir a realidade? Era o vinho, só podia ser. Mas Irina leu meus pensamentos e arrematou: “Há mundos imaginados tão intensamente que ganham força para preencher dimensões físicas, ainda que não sejam as nossas. Quem sabe eu seja um sonho seu, professor. Para mim o senhor é o professor que eu sempre sonhei em ter: afeto de pai, carinho de amigo e porte de mestre”.
Nunca havia me emocionado com declarações de alunos. Os presentes de fim de ano, carro de som, homenagens... Mas o que Irina disse me tocou de verdade, pois seus olhos negros não vestiam a capa da falsidade. Não me surgiam respostas, agradecimentos. Somente uma vontade forte de beijá-la a testa e foi o que fiz.
“Por favor, Irina, me explique: por que esses mundos – um mais insano que o outro - estão se mesclando? Quem é esse Imperador (tivemos vários)? Por que eu e para quê?”
“Você, professor, é mestre, educador, quem prepara a Humanidade para receber conhecimento. É mestre da história, que carrega toda a Humanidade milenar. Por isso você é um escolhido”, disse-me Irina com voz firme. Novamente, eu não tinha palavras.
“Você já se perguntou, professor, se o mundo em que vivemos existe mesmo ou é apenas uma ilusão?”, dirigiu-se a mim Irina, que há pouco me tratava por senhor. Viver num mundo de ilusão: é a crença de Platão, Berkeley, irmãos Wachowski... “Nós não somos reais?”, perguntei. “Sim, professor, somos. Tente imaginar como se sentem Werter, Dom Quixote, Gúliver...”
Dom Quixote? Meu herói da adolescência existe em um desses mundos? “Sim, professor. Há muitas pessoas que viveram intensamente o Quixote. Ele cavalga sobre o Rocinante, ao lado de Sancho Panza, pelo mesmo mundo do Werter.”
“Mas você não me respondeu, Irina: quem é o Imperador e por que diabos mundos se misturam, meu Deus?”, indaguei Irina impacientemente. “A fusão dos mundos só está acontecendo porque o universo dos sonhos – onde vivem Quixote, Rei Artur, Dom Casmurro – perdeu a sustentação de sua órbita.” Perguntei se era o Sol, por acaso. No que a aluna me respondeu: “não exatamente. É todo um universo de pensamentos que está perdendo a luz. Aí é que entra seu papel, professor: descobrir qual a relação do Imperador com o apagar dessa luz.”
Como? Faltou ainda explicar quem é o Imperador. Não faltou mais: “o Imperador, professor, é alguém ou alguma coisa que foi banido do universo dos sonhos e, desde então, planeja sua volta. Agora, com a fusão dos dois mundos, o nome Imperador aparece em sonhos das pessoas escolhidas para essa batalha.”
“Uma batalha? Eu vou ter que pegar em rifles e lutar contra esse carcamano?”, perguntei assustado a Irina. “Não, professor. A batalha é contra a fusão dos mundos: se eles se misturarem de vez, os dois deixarão de existir. Precisamos do Imperador, para saber como podemos impedir essa fusão.”
“E onde eu encontro esse Imperador?”, perguntei já sonolento. “Em seus sonhos, professor. Mas você precisa esperar mais duas pessoas antes de dormir. São dois escolhidos para a batalha: Wellington e Sarah.”
Eu os conheço: Wellington é zelador de uma das escolas onde trabalho. Sarah é balconista em uma padaria perto da minha casa. Eis a situação: um professor de história, fã de música caipira; um zelador que “curte” reggae; e uma balconista adolescente metaleira. Escolhidos ecléticos...
Irina explicou-me: “Wellington gosta de ler, principalmente fábulas heróicas ao estilo Senhor dos Anéis. Sarah é a música e, também, a que tem mais espiritualidade aqui. Espere, professor, que logo vocês vão encontrar o Imperador.”
Eu já não me embriagava mais de informações, ainda que o clima parecesse muito psicodélico para alguém que não consumiu LSD. Enquanto esperava para dormir – vejam só! –, cantarolava melodias das canções de minha infância. “Ando devagar porque já tive pressa e levo esse sorriso porque já chorei demais...” Eis que Irina, tão jovem, continuou a canção junto a mim. E lá fomos nós, cantarolando músicas de Almir Sater, Tião Carreiro, Silvio Britto, Pena Branca e Xavantinho... Músicas: formavam meu elo com a “realidade” que eu um dia vivi.
Depois de eu e Irina passarmos por todo o repertório violeiro, chegando até mesmo a Mercedes Sosa, Atahualpa Yupanqui e Joan Manuel Serrat, chegam enfim os dois “escolhidos”. “Vocês não se sentem num manicômio?”, perguntei. “Não: esse mundo maluco é muito melhor que o mundo da minha infância com pai bêbado que batia em mim.”, respondeu Wellington que, sim, teve uma vida de muitos obstáculos. Sarah, sempre lacônica, resumiu-se num simples “é estranho”.
“É hora de começar o sono.”, conclamou-nos Irina. Não haveria de ser em plena calçada. “Vamos para minha casa, que ainda existe, eu acho.”, disse Wellington.
E lá fomos. Uma casa simples, pequena, porém muito rica em detalhes e cuidados. Acabamos nos estendendo em colchões e sofá. “E agora?”, perguntou Sarah. “Durmam, simplesmente. A gente se encontra lá nos sonhos.”, finalizou Irina. Todos os quatro estávamos muito ansiosos e entupidos de medo: seria difícil dormir assim. Mas, do nada, um sono se abateu sobre nós, como se fosse um veneno, uma droga, um medicamento. A luta para fechar os olhos passou a ser uma batalha para deixá-los abertos. Batalha à qual todos se renderam.
Mais uma vez, um sonho estranho: eu só avistava uma neblina púrpura muito densa por todos os lados, e ouvia a voz de uma criança cantarolando qualquer canção. Chamava pela Irina e não tinha resposta. “Wellington? Sarah?”, nada... O que existia: a voz da criança a cantar e a neblina púrpura. Mais nada. E a voz da criança cada vez mais próxima. “Tolle lege””, ela cantava num latim macarrônico. “Tolle lege, tolle lege.”, tomar e ler o quê? Lembrei: esse é o canto que Agostinho ouviu e acabou levando-o a converter-se cristão. “Sonhos! Poupem-me de experiências religiosas agora, por favor!”, respondi encarando a neblina. Eis a réplica recebida: “tolle lege, tolle lege”. Essa repetição preenchendo o nada em minha volta parecia me deixar embriagado novamente. A Irina disse: “A gente se encontra lá nos sonhos.”, mas aonde estão todos? Nunca acreditei em poder de sonhos, mágica, universos paralelos, religião. Por que haveria de crê-los agora? Era mais um sonho, só isso. Tudo isso deve ser sonho, mesmo, e amanhã, segunda-feira, eu levantarei às seis para trabalhar.
Uma voz diferente, firme e já rouca do tempo, interrompe o sonho insólito: “Não negue a si mesmo, filho!”. Pai? Meu falecido pai? O vinho era forte... “Não se negue ao que você realmente crê!”, repetia meu pai. “Você está morto, pai.”, respondi. “Mas ainda vivo, em você, em outro lugar.”, replicou a voz de meu progenitor. E passei a divagar, pensar sobre mim mesmo. Por viver o modismo particular de ser cético, deixei de experimentar sentimentos comuns até mesmo para céticos, como o amor, a paixão, a compaixão. Talvez aquele sonho fosse uma prova à minha farsa. Talvez todos esses fenômenos bizarros tenham sentido fora do meu falso ceticismo.
A neblina púrpura se desfez. A voz da criança calou-se e pude ver, à minha frente, os “escolhidos”, Irina, Sarah, Wellington.
Agora estávamos reunidos em sonho! Será? Ainda desconfiava da realidade e dos sonhos. Ainda era forte em mim a sensação de que acordaria às seis da manhã de segunda-feira para trabalhar, apesar de tudo.
“Aqui vamos encontrar a resposta.”, disse Irina, obviamente falando sobre imperadores impossíveis. O cenário vazio do sonho-reunião foi preenchido subitamente por enormes edifícios: todos da mesma forma e apresentando a mesma cor de ferro e vidro. Sarah abriu um sorriso, esticou o dedo indicador para um entre os inúmeros prédios e disse: “Lá!” A sensibilidade da moça nos conduzindo?
E para aquela direção fomos. E eu que pensava serem os sonhos lugares onde não há limitações físicas! Caminhamos, caminhamos, até chegar à porta de entrada da torre igual. Tudo parecia muito real para um sonho, pensei. E Irina leu meus pensamentos novamente: “não é um sonho. É realidade. Estamos na outra parte, no mundo da imaginação. Dormir era uma forma de virmos para cá. Numa situação normal, seria um sonho. Mas nessa mistura de mundos, não.”
Realmente. Percebi isso porque nesse instante ocorreu uma situação inusitada: um escaravelho gigante passando por nós como se estivesse nos cumprimentando. “É o Gregor Samsa! É como eu o imagino!”, exclamou admirado Wellington.
Entramos no edifício. E eis um fato estranho. Um saguão de entrada como que futurista, acompanhando a arquitetura do prédio: funcional, monocromática, sem adornos, sem arte, sem humanidade. Uma frase em latim quebrava a monotonia do lugar: “OBLIVIO IMPERATOR MUNDI”.
Tudo sumiu. O que vi diante de mim foi o braço do sofá. Acordei. Acordamos. Mais um sonho dentro do pesadelo pelo qual passávamos. “Vocês estavam lá? Viram o escaravelho, a frase em latim?”, perguntou Sarah. A resposta afirmativa de todos foi um atônito balançar de cabeça. “Alguém entende latim?”, perguntei, já descrente de uma afirmação. Para minha surpresa, Sarah alegou conhecer a língua. “Fortuna Imperatrix Mundi significa Sorte (fortuna) imperatriz do mundo. Oblivio Imperator Mundi quer dizer ‘Esquecimento Imperador do Mundo’”.
“Hã? O Imperador é o esquecimento? A falta de memória? Isso não tem sentido!”, afirmei impaciente. “Mas eu disse que esse Imperador poderia ser alguma coisa e não alguém.”, replicou serenamente Irina. O imperador a quem devemos derrotar é o esquecimento. De quê? A falta de memória do povo: seria isso? É o que nós quatro discutíamos. Eu já não tinha mais paciência: esquecimento, sonhos, luta para salvar o Universo... Era tudo advindo da literatura que sempre abominei: fábulas, heróis, bem e mal, personagens superficiais...
“Esquecimento... Será que essa doideira toda é como aconteceu no filme História Sem Fim, onde o mundo da fantasia estava sumindo porque as pessoas não viviam mais as imaginações nele?”, filosofou Wellington. “E onde está o cão voador?”, repliquei ironicamente. “Mais paciência professor: o que o Wellington disse parece sem sentido, mas pode estar bem próximo do que está acontecendo.”, alertou-me Irina, não tão serenamente. “Se for isso, o que vamos fazer para impedir a destruição dos mundos?”, perguntou Sarah.
Wellington levantou-se do colchão, fez expressão de quem sabe centenas de anos de cultura e discursou: “o mundo da imaginação não é físico, como o nosso. Assim, não segue as leis universais da física. O eixo, a órbita que sustenta esse universo de imaginação parece ser, pelo menos para mim, as mentes das pessoas. Se não lemos, não assistimos filmes, não temos lendas, fábulas, heróis, vilões, terras mágicas em nossa imaginação, o mundo dos sonhos perde a sustentação. Nós devemos, então, reviver a imaginação!”.
Mas como fazer isso em horas, dias? Um mundo sem sonhos não se muda da noite para o dia.
“Não se muda da noite para o dia o mundo sem sonhos, mas o mundo dos sonhos, talvez.” Completou o sábio Wellington. Irina mudou a expressão – de atônita para profundamente triste –, olhou em meus olhos e disse: “no início dessa confusão, eu era a única ligação com a sanidade para o senhor, professor. E, agora, entendo que o senhor é a única ligação de existência para o universo não-físico. Tudo está em sua mente, e o senhor precisa se sacrificar para que os mundos não sumam.”
“Sacrifício? Não sou Jesus para morrer pela não-cultura da humanidade!”, disse, ainda não entendendo o propósito disso tudo. “Nós quatro precisamos nos sacrificar: toda a memória está, de um jeito que eu não entendo, dentro de nossas mentes.”, discursou Sarah. O fato é que, em tese, nosso sacrifício, naquele momento, nos levaria a uma existência não-existente, a fazer parte do mundo dos sonhos. Se morrêssemos ali, nossas memórias viveriam lá e tudo voltaria ao normal.
“Então, que comece o suicídio!”, disse novamente irônico. “Não podemos nos matar, mas precisamos que alguma coisa ou alguém do mundo de lá nos mate.”, respondeu Irina, antecipando nos olhos as dores da morte. Isso era, para mim, o mais absurdo de tudo, desde o céu roxo e o Interbairros II azul. Mas nada mais cabia em leis físicas, razão, religião.
Se for um sonho, morrerei e levantarei às seis para trabalhar. Se for real – o que é real? -, deixarei de existir? O mundo dos sonhos é uma existência ou não? Novamente sentia a embriaguez de um vinho que já não estava mais em meu corpo. A cabeça balançava involuntariamente: será isso o reflexo de uma epifania? Será que os santos assim se sentiam diante de uma revelação? Não: sou pobre, sou comum; Não sou guru, santo ou profeta. Sou um homem maravilhado em meio a mundo que não conheço.
“Quem nos mataria?”, perguntou Sarah. Depois de soluçar pensamentos, sugeri um algoz: “Fausto!”
Fausto, o homem que vendeu a alma a Mefistófeles em troca de dinheiro e poder. Ele mataria se assim fosse vontade do “Mephisto”. Pois era primeiro o ser demoníaco que devíamos procurar.
“Sua idéia é muito arriscada, professor.”, disse Irina, que continuou: “por mais que seja o Mefistófeles de um livro, ele pode se imaginar não do mundo dos sonhos, mas do próprio inferno.” Do inferno? Então céu e inferno não são imaginação?
“Será que vai dar certo?”, perguntou Sarah. Ninguém acreditava que esse plano maluco funcionaria: invocar o diabo e fazê-lo convencer seu “sócio”, Fausto, a nos matar. “E por que precisamos morrer?”, perguntei já saudoso de meu sangue. “Porque assim recuperamos o equilíbrio, como numa balança: o lado mais leve precisa se equiparar com o mais pesado.”, resolveu Wellington.
E lá fomos: “Mefistófeles, Senhor de Fausto, vinde até nós!”, repetindo a ladainha satânica para um ato santo! “Mefistófeles, Senhor de Fausto, vinde até nós!”, até que o céu roxo escureceu-se, como que sem luz nem mesmo da lua ou das estrelas, e apareceu em nossa frente um homem com roupas de gala e fogo nos olhos.
Antes que um de nós pudesse explicar a rogação, Mefistófeles disse: “Eu já sei o que vocês querem. Mas não terão! EU não convencerei Fausto a matá-los! Seu mundo se destruirá, porque EU quis assim! EU sou Imperador do Mundo! Vocês sucumbirão à eternidade do nada, junto com seu mundo de sonhos, porque EU terei prazer em plenitude depois de ver a agonia da destruição de seus lares! EU, Senhor da Trapaça, EU os matarei!”
Uma dor profunda acompanhava o que parecia ser rasgar de ossos nas costelas, além de uma sensação de derretimento do cérebro. Eu, Irina, Wellington e Sarah, agonizando as dores da morte. Era o fim de tudo. Se aquele Mefistófeles fosse um demônio “real”, morreríamos e os dois mundos entrariam em destruição mútua. Mas, se aquele fosse o Mefistófeles do Goethe, o equilíbrio estaria feito e nossas mortes não seriam em vão.
Entre os gritos de desespero e dor, ouvi a voz de Irina, quase num gemido: “perdão, professor! Eu errei!”. Um pedido indevido, já que a idéia frustrada foi minha. Depois de ver os olhos pretos e molhados de Irina se fecharem, caí em escuridão.
Eu já não ouvia mais os gritos. Não sentia o fogo derretendo as entranhas. Um silêncio total, mergulhado em escuridão profunda, num instante onde eu não sabia se era eternidade ou fim do tempo. Eu estava sozinho, sem nada, sem ninguém. Falhamos: eis o fim de tudo.
De repente, de forma violenta, as trevas foram quebradas por um longo assovio e voltei a sentir minhas costelas, que pareciam golpear o nada. O assovio perturbador continuava e, de quando em quando, minhas costelas pulavam do chão como se fossem puxadas por uma força alheia até que o assovio cessou.
“Conseguimos trazê-lo de volta! O coração voltou a bater!”, diziam vozes em volta de mim. Com muito esforço, consegui abrir os olhos: eu estava na cama de um hospital, ligado a aparelhos. “Que susto você nos deu, professor!”, disse um dos médicos. Eu havia passado por um infarto no coração na noite de domingo. Fui salvo por um dos parentes da visita dominical. Eu só veria Irina uma semana depois.
Durante os dias de internamento, ficava pensando se tudo aquilo era sonho. Talvez uma forma que o cérebro arrumou para manter a vida nesse corpo moribundo. Eu ficava esperando a visita de um dos envolvidos nesse sonho, mas: nada.
No quarto dia recebi, então, a visita de minha filha. Ela olhava com felicidade e alívio para meu rosto de barba por fazer. Depois de um longo abraço e um beijo na testa, a menina mirou no meu olhar com seus olhos pretos e, novamente, adivinhou minha indagação: “sim, pai: tudo o que aconteceu foi verdade. Agora não é mais. Agora o mundo dos sonhos segue seu rumo, enquanto nós vivemos no mundo físico. O que aconteceu foi real, mas não é mais porque evitamos aquela catástrofe. Mefistófeles tanto se imaginava senhor dos infernos que acreditava ser real e, por isso, queria que tudo se destruísse. Nós quatro sabemos disso, mais ninguém. Agora, o nosso dever é fazer renascer os sonhos na mente das pessoas.”
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